Preta, preta, pretinha. Assim como há centenas de tipos diferentes de fios cacheados, as peles pretas também têm uma imensa variedade de tons e precisam de produtos que ‘conversem’ com elas, valorizem sua beleza e enfeitem suas donas. A boa notícia é que marcas nacionais – na esteira das internacionais – voltam seus olhos para esta consumidora e ampliam suas cartelas de produtos. De quebra, facilitam a vida do maquiador que consegue ter de tudo um pouco em sua bancada.
Renata Deos
Falar de beleza negra nos dias de hoje requer um olhar ao passado. Se pensarmos que a abolição da escravatura no nosso País aconteceu em 1888 e que só no final da década de 1970 os movimentos em defesa da população negra conseguiram mais protagonismo, por exemplo, o Movimento Negro Unificado (MNU), que nasceu em 1978. Ou seja, a pauta antirracista demorou para ganhar espaço e visibilidade. No entanto, uma das maiores conquistas do movimento negro no País foi a adoção por parte do governo brasileiro da nomenclatura “negro” como sendo a soma da população preta e parda, definição incorporada ao Estatuto da Igualdade Racial de 2010. Com essa adoção, o Censo de 2022, pela primeira vez desde 1991 revelou um país de maioria negra 55,5%, enquanto brancos 43,5%.
E quando se fala de maioria, todo mundo presta a atenção.
Várias marcas de beleza já buscavam trazer o tema da diversidade para seu portfólio de produtos, porém quem soube fazer barulho e chamar a atenção foi a marca da cantora Rihanna que em 2017 anunciou uma cartela com 40 tonalidades de base.
A inclusão de diversidade em termos de tonalidades de pele a partir do “Efeito Fenty” para a indústria de maquiagem se tornou obrigatória. Hoje MAC, Fenty Beauty, Bruna Tavares e outras tantas marcas de maquiagem oferecem bem mais do que os antigos tons: claro, médio e escuro. A marca da Rihanna desde 2017 adicionou mais 10 tonalidades ao portfólio totalizando 50 tons de base. Mas se engana quem acha que a Fenty é a marca com maior variedade de cores. A tradicional MAC tem 68 tons e a Pür Cosmetics tem 100 variações. Dentre as nacionais, Bruna Tavares figura entre as que têm maior diversidade, com 30 tons.
O beauty artist Andre Veloso (@andrevelosoreal), que trabalha com diversas celebridades e modelos negras, confessa que não ter mais que fazer misturinhas para chegar ao tom não só agiliza o trabalho, como oferece melhor qualidade no resultado final. “Hoje vemos várias marcas importadas investindo em vários tons. Infelizmente, raríssimas marcas nacionais. E isso é triste porque temos uma população enorme que quer consumir bases e corretivos com diversidade de pigmentos”, diz Veloso.
As marcas de cosméticos além da gama de cores mais ampla, também têm se preocupado em atender particularidades da pele negra levando em conta necessidades específicas, como por exemplo questões de hidratação, opacidade e brilho, hiperpigmentação, manchas e proteção solar. Essas preocupações que valorizam a diversidade estão provocando mudanças na indústria e revertendo uma história de sub-representação dessa população no mercado da beleza.
Sem falar que muitas dessas marcas preocupadas com a beleza negra foram fundadas por mulheres negras. No Brasil, podemos citar marcas como Negra Rosa, Divas Black, De Benguela e Muene Cosméticos como exemplos de empresas fundadas por mulheres negras para atender essa população que estava invisibilizada. Elas conhecem, por experiência própria, as principais queixas e insegurança em relação ao uso de cosméticos no dia a dia.
“Entender as dores que essas mulheres têm faz total diferença. Esse público sempre sofreu muito com falta de produtos, falta de orientação correta na hora da compra, até mesmo no atendimento em lojas. Conheço muitas mulheres que não se sentem à vontade para entrar em lojas famosas de cosméticos porque ainda sofrem com o racismo”, diz a CEO da Negra Vaidosa Scalp, Josi Helena (@negravaidosa).
Josi é também esteta cosmetóloga, tricologista, especialista em estética de pessoas negras e dá palestras, consultorias e treinamentos sobre beleza negra. Para ela, foi a Internet a responsável por impulsionar o desenvolvimento de produtos específicos para esse público. “As mulheres se encontravam nas comunidades do Orkut e trocavam receitas de beleza e avaliavam produtos”, lembra Josi.
A troca de experiências também ganhou aliados na literatura. Apesar de ainda não ter tradução no Brasil, o livro “Black Skin – The definitive skincare guide” de Dija Ayodele (@dija_ayodele) aborda as particularidades da pele negra, desmistifica crenças antigas e ensina como manter uma pele negra saudável e bonita. Além de informações sobre cuidados de beleza, o livro também discute como a percepção da beleza na pele negra foi moldada historicamente e os impactos psicológicos. No Brasil, o primeiro livro a tratar sobre beleza negra é o “Dicas Maquiagem para Pele Negra” da beauty artist Carol Romero (@makeupcarolromero). Nele ela mostra que maquiagem e cuidados com o cabelo das pessoas pretas representam a valorização da estética negra, invisibilizada por tanto tempo.
A beleza negra não fica limitada a tons de base. No skincare também vemos um crescimento de produtos próprios para pele negra. La Roche-Posay, Avon, Mantecorp e até a nativa digital Ollie entre outras marcas já oferecem protetores solares para pele negra. Sim, é fundamental proteção solar para pele negra. “É errado pensar que por ser uma pele com maior quantidade de melanina, se possa deixar de usar um protetor solar”, afirma Josi Helena. Ela explica que o sol pode provocar manchas e até câncer de pele.
A Nivea lançou recentemente uma linha de cuidados corporal e facial, a Beleza Radiante, para atender necessidades específicas da pele negra. “Por termos uma glândula sebácea maior, não significa que a pele é mais oleosa. O estrato córneo (camada mais externa da epiderme) é mais sedimentado na pele negra e o folículo piloso fica num ângulo que faz com que se precise de mais conteúdo lipídico para essa pele”, explica Josi Helena. Segundo ela, observando essas características estruturais, a indústria passou a oferecer alguns produtos com ativos apropriados.
Outra empresa que também tem em seu portfólio produtos para pele negra é a RAAVI Dermocosméticos. Em entrevista, a head de marketing da empresa afirma que o hidratante corporal foi só o pontapé inicial para uma série de produtos que eles pretendem lançar para suprir o déficit que existe no Brasil. Foi esse déficit que levou a fundadora da marca Negra Rosa a empreender. Rosângela Silva (@rosanegrarosa) diz: “A Negra Rosa não nasceu para ser uma marca para todo mundo. Ela nasceu com o objetivo de ser uma marca para mulheres negras.”
Diversas marcas trabalham cross-segmentos e um que não para de se desenvolver, de olho na beleza negra, é o de cabelos. O ‘boom’ da transição capilar trouxe a necessidade de produtos para cacheadas e crespas. Sabe as comunidades de Orkut que a esteta cosmetóloga Josi Helena lembrou? Lá as mulheres negras trocavam truques e receitas, por exemplo o uso de maionese nos cabelos. Observando esse movimento das comunidades com trocas de receitas, a indústria desenvolveu produtos. Um bom exemplo foi a Salon Line que lançou um de seus maiores sucessos, a Maionese Capilar, que aproveita do nome à embalagem do produto alimentício.
Gelatinas, cremes, pomadas e uma série de itens para cacheadas e crespas cuidarem dos fios tomaram conta das prateleiras e gôndolas. Mas quando se fala em penteados, como por exemplo as tranças, ainda há uma carência de produtos específicos. “O Brasil copiou o movimento dos Estados Unidos, mas aqui temos clima diferente, hábitos diferentes. Nem sempre os ativos usados nos produtos de lá vão funcionar aqui. Nem sempre a adaptação de um finalizador vai funcionar para trançar, por exemplo”, comenta Josi Helena. Ela aponta períodos festivos e de fim de ano, quando geralmente vemos a Anvisa nos noticiários cancelando o registro de diversas pomadas usadas para trançar cabelo. “As pessoas vão pra praia, pra piscina e há uma incidência maior de intercorrências no couro cabeludo”, diz Josi Helena, que também é tricologista e entende bem do assunto. Segundo ela, que acompanhou as reuniões sobre o tema com a Anvisa e fabricantes, a investigação de componentes e a definição de uma formulação segura desses produtos ainda está em andamento.
A pele negra pode ter sensibilidades, ter oleosidade ou ressecamento, ter hiperpigmentação e manchas. Ter quelóide. Ter acne. Como diz Josi Helena: “Uma pele não é, ela está! Depende de fatores externos e internos. Hábitos, clima, hormônios etc.” Portanto, falar de beleza negra vai além do lançamento de mais e mais produtos pensados para essa população. A beleza negra passa também pela representatividade nas campanhas publicitárias, pelos profissionais maquiadores e cabeleireiros, empresários, químicos e várias outras peças-chave para que os 55,5% de negros no Brasil sejam vistos e atendidos da mesma forma que brancos têm sido desde sempre.